Entrada franca!

Entre...pode entrar!!!! Vasculhe tudo!!!!! Se pelo menos durante alguns segundos você parar em algum texto para tentar compreender algo, tentar desvendar o campo semântico de alguma palavra ou até mesmo se emocionar...terei cumprido o meu papel.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dia bom

     Gostava da fumaça que subia e do aroma. Saboreava primeiro com o olfato. Um ritual diário que cumpria sempre ao pôr-do-sol. Para ela, uma maneira poética de dar adeus a mais um dia. Toda ela era pura poesia. Parnasiana. Seu corpo, seu cheiro, suas roupas, seu acordar para a vida todas as manhãs. Olhava-se no espelho e dizia: _ Dia bom! Sentia-se bem durante o dia, principalmente se estivesse nublado com nuvens brincando de Salvador Dalí. Lembrava-se dos seus sonhos. Durante alguns minutos mexia com gestos de um pintor meticuloso o café na xícara. Ficava encantada com o movimento. Depois de frio, num gole só degustava o sabor amargo. Não possuia afeição por  açúcar. O natural era, para ela, uma maneira de respeitar a Deus. Foi criada por uma família cristã e, apesar de nunca ter sido, procurava respeitar tudo o que foi ensinado. Pensava sempre no poder do homem de transformar tudo e a todos e essa era uma maneira de dizer não. Eles sempre invadiam os seus sonhos. Aliás, ele sempre invadia o seu sonho.
     Comprava todos os dias um livro. Escolhia pela capa. Mesmo quando percebia que não era tão interessante a expectativa da próxima página o tornava. Era o seu modo de adormecer. O ritual de ir para a cama, apagar as luzes e cerrar os olhos incomodava. Sentava-se numa poltrona, que ficava de costas para a rua, acendia a luz de um pequeno abajour, pegava uma xícara de café e sua viagem iniciava.
     Chegou à Igreja atrasada cumprindo o protocolo de toda noiva. Ansiedade, naquele momento, o seu nome. Perfeito! Pensou assim que avistou o noivo já no altar. Todos os lugares ocupados. Pessoas em pé. Flores. O padre. Ah! E o canto gregoriano anunciando sua entrada. E para não fugir da regra, o friozinho na barriga. Ensaiou um choro, mas se lembrou da maquiagem. As fotos ficariam ruins. O vestido apertado sufocava um pouco, mas nada tiraria seu meio sorriso. Na verdade, queria era arrancar tudo aquilo, pegar seu noivo e sair correndo pelo mundo afora. Todavia, faltava tão pouco. Tudo já ia terminar. Pensava logo em mergulhar no mar verde dos olhos dele e se afogar. Vestiu a face com o véu e foi em direção à felicidade. Tampava um pouco sua visão aquilo. Apenas vultos na retina. Nada importava. Já ia tudo terminar. Sozinha dava passos largos pelo imenso tapete vermelho. Ficou parada à espera de uma mão levantado o véu. Transpirava. Era o seu momento...único e seu. Não quis mais esperar. Esfregou os olhos. Novamente...novamente...novamente...até que um vento muito forte arrancou o telhado da Igreja e algo que parecia com neve começou a cair sobre seu corpo. Desesperada, olhou ao redor. Noivo, padre, flores...nada e ninguém. O tapete...o lindo tapete que a conduziu até o altar se transformou num mar de sangue e uma imensa onda em sua direção banhou seu corpo. Abriu os olhos e sorriu. Acordava assim todos os dias. Não se importava. Sabia que mais um dia, de muito trabalho esperava por ela.
     Caminhava sempre pela rua beirando a calçada. Era o seu modo de arriscar, desafiar e brincar um pouco com a vida. Assim que virou a terceira rua à esquerda, mirou ao longe uma aglomeração. Sentiu uma leve dor. Algo parecido quando estava naqueles dias. Estranhou. Aquela sensação se perdeu há um bom tempo. Continuou. Apertou o passo. Percebeu que algumas pessoas olhavam-na. Ficou inquieta. E quanto mais se aproximava mais gente passava a observá-la como que a reconhecendo. Quando chegou bem perto todas aquelas pessoas ficaram de frente pra ela e foram abrindo caminho. Olhou o chão. Um caminho vermelho que seguiu com passos leves e curtos. Passou a não mais encarar ninguém. Sentia apenas aqueles olhares. Seu foco...o chão vermelho. O último par, um homem e uma mulher, no meio daquela multidão, abriu passagem. Não teve dúvidas. Aliás, nunca teve tanta certeza. Um homem branco, de braços abertos, olhos de mar apontando o céu. O céu. Era seu desejo maior. Ir ao céu como seu homem. Era ele. É ele, pensou. Tirou o sapato. Não podia chegar ao céu sem primeiro se desnudar. Deitou-se ao lado dele. Beijou sua face. Tocou seu rosto. Uma lágrima brotou dos olhos dela e caiu direto nos lábios dele. O primeiro beijo disfarçado. Afinal, muita gente perto. Sorriu. Olhou o céu. O dia nublado e com nuvens. Sorriu novamente. Olhou em redor. Ninguém mais. Apenas um pedaço de tecido branco. Sempre foi muito friorenta. Cobriu-se. Sabia que ele não gostava de cobertas. Mais um sorriso. Pela primeira vez adormeceria deitada.

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