Entrada franca!

Entre...pode entrar!!!! Vasculhe tudo!!!!! Se pelo menos durante alguns segundos você parar em algum texto para tentar compreender algo, tentar desvendar o campo semântico de alguma palavra ou até mesmo se emocionar...terei cumprido o meu papel.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O prato

Foram quinze anos...acho eu. Sempre tive uma relação estranha com o tempo. Nem amigo, nem inimigo...apenas um respeito mútuo. E também nunca me relacionei de maneira amistosa com o virtual. Gosto do toque, olho no olho...gente de carne e alma...mais alma que carne. Entranto, insistiram. E não posso negar a sedução do virtual. Não posso negar sua existência na inexistência do que é dito, das inverdades proferidas - ânsia de vômito. O incômodo ácido que sobe à garganta. O virtual é ácido corrosivo. Corrompe até as almas mais impuras.
Após quinze anos de casamento, estava eu livre. Liberdade ainda aprisionada. Às vezes, a liberdade se torna uma inacessível prisão. Pássaro sem asas. Gaiola cujas grades são pensamentos. Luto com eles. Mas sempre me convencem, pois seus argumentos são leis de um código impossível de apagar. Leis alicerçadas no tempo de um tempo em que o tempo tinha tempo...o tempo hoje é o amanhã.
Reparei que havia várias salas. Um universo de salas. Salas para todos os gostos, e tipos, e vidas, e comportamentos. Escolhi uma, aleatoriamente. Uma. Acho que, de certa forma, foi a forma de representar a minha única experiência. Uma.
Nome? Idade? Onde mora? A fim de quê? Sexo? Amizade? Trabalha? Tem carro? Tem cam? Tem local? Tem? Tem? Tem? Tem? Tem? Tem? Tem? Tem? Não era, ali, necessário ser. Pra quê? Eu tinha tudo o que queriam que eu tivesse. Eu tinha...eu tenho! Tudo muito fácil, pensei. Uma força tamanha e grandiosa invadiu-me. Eu tenho! Ser? Que nada! Ter é o grande foco.O grande momento! E eu tenho...o desejo. Afinal, sou homem e não posso esperar - sempre os amigos dizendo isso. Todos já tinham experimentado. E como festejaram o dia de minha separação! Festejaram como ao nascimento de um novo ser que acaba de chegar ao mundo do ter.
Marquei o encontro.
Marquei próximo...muito próximo de meu apartamento. Disseram-me depois que tinha cometido erro grave. Mas não podia me afastar tanto de mim assim de uma hora pra outra.
Até o encontro não nos telefonamos, não tivemos contato algum. Apenas suas palavras...tentava decifrar sua semântica. Sintaticamente, conheci-a. Hipébato. Era um jogo excitante cuja vitória era o principal objetivo. Empatar jamais! Pior que a perda, o empate.
E lá estava ela. Exatamente como descreveu nos papos que tivemos na sala. Eu demorei exatamente uma hora para escolher a roupa. Fiquei entre um terno e algo mais esportivo. Escolhi o esportivo. Era domingo.
Estava ao lado do restaurante. Atravessando a rua senti seu olhar passeando pelo meu corpo. Um olhar policial, mas corrompido. Nem deu tempo de pensar como seria o cumprimento. Me deu um beijo no rosto, um abraço apertado e brincou com a saliência da minha camisa pólo na região abdominal. Vento maldito, pensei. Fiquei rubro.
Sentamo-nos.
Como jogava o cabelo! Era de uma sensualidade! Gestos largos. Às vezes meio sorriso, às vezes sorriso pleno. Não havia uniformidade na sua pessoa. Era um mosaico aquela mulher. Não me assustava aquela situação. Eu precisava daquilo. O momento era aquele. Com certeza - gol!
Conversamos sobre tudo, num diálogo fragmentado pelas olhadas entre um botão e outro da minha camisa. Sim, bebemos. Eu, cerveja. Ela, conhaque. Estranhei. Todavia, era esse o verbo de que eu necessitava.
O restaurane era o melhor das redondezas. Disseram-me depois que pequei nisso também. Preferimos o self service. Na verdade, escolha minha. Gostei disso.
Olhei tudo o que tinha. E comecei a colocar no prato tudo o que eu não estava acostumado a comer no meu dia a dia. Coloquei no prato apenas o que nunca tinha experimentado. A ocasião pedia. Sentia-me cada vez mais solto e, pela vez primeira, com uma vontade alucinógena de sair logo daquele local. O cheiro da comida me dava mais fome. E que fome!
Sentei-me. Reparei que ela foi direto num determinado ponto do restaurante. Não cheguei até lá. E ficou um bom tempo olhando tudo. E eu também olhando tudo! Vi que perguntou algo a um dos garçons. Logo depois, todo solícito, veio ele com uma bandeja e se aproximou dela. Ela sorriu, agradeceu e colocou no prato o tão desejado alimento.
Detesto comer sem farinha - disse - assim que se sentou. Meu olhar que até então estava paralisado no seu se direcionou para o prato. Nunca pensei que um prato pudesse dizer tanto de uma pessoa. Nunca pensei que um prato pudesse decretar o fim de um pretencioso início. Nunca pensei que ele - o prato - fosse dialogar comigo. Disse-me sem dó nem piedade para que todos ouvissem que tudo era um grande espetáculo da vida e que a cortina tinha acabado de fechar. Mostrou-me que tudo não passava de uma bela maquiagem profissinal. Disse-me tudo isso através dos alimentos: feijão, arroz, farinha e uma linguiça inteira.
Como um prato de comida pode dizer tanto da alma humana? Como?
Não...não comi...nem ela e nem a comida. Não mais arroz e feijão na minha vida. Muito menos regados à farofa e linguiça.
A desculpa que dei para ir embora não lembro. Lembro que ela ficou, pois disse que estava com muita fome.Eu também...mas de vida regada à desejo e experimentação.
Perguntou apenas se deixaria a conta paga e me pediu um trocado para ir embora. Também não lembro quanto deixei de dinheiro. Não me importava. Eu tinha.
Voltei para o meu apartamento e resolvi subir pelas escadas.
Tirei a roupa assim que entrei.
Tomei um banho. Demorei.
Quando me deitei vi que o terno estava ainda sobre a cama ao meu lado. Joquei-o no chão. Não queria mais ninguém comigo. Não naquele momento.
Na minha frente o computador.
Sabia que ele estava rindo de mim. Ele era todo ironia. Senti isso desde o dia em que o comprei. Conhecia mais do mundo.
Percebi a falta de luz e calor. O pôr do sol anunciando fim do dia.
Lembrei-me da mulher. Era uma mulher de carne e osso.

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